Nenhuma história pode existir sem personagens. Eles são os agentes de transformação, aqueles que movem a trama, dão corpo às ações e sustentam o conflito. Porém, é comum ver roteiristas e escritores se apegarem tanto à trama ou ao conceito geral da história que acabam negligenciando o aprofundamento nos personagens. E isso é um erro que cobra seu preço.
Um bom personagem é aquele que existe como uma extensão real, quase tangível, do público. São eles que nos conectam emocionalmente, que fazem com que a história valha a pena ser contada. Porém, existem alguns sinais que denunciam quando o autor não conhece seus próprios personagens. Vamos explorar esses sinais — e ilustrá-los com exemplos de filmes, séries e livros que acertaram (ou erraram) nessa construção.
Descrições vagas ou inúteis
Nem todo personagem precisa ser descrito em detalhes no primeiro minuto. Mas, se você opta por descrever, precisa fazer isso com propósito e clareza. Não adianta dizer que um personagem tem "estilo" sem mostrar o que isso significa. "Ter estilo" pode ser qualquer coisa — o protagonista de O Grande Gatsby, por exemplo, é descrito como alguém de classe e sofisticação. Mas Fitzgerald nos faz sentir isso ao detalhar suas roupas, festas e gestos. Gatsby não é apenas descrito como "estiloso", ele é mostrado como alguém que se destaca em um ambiente de luxo.
Agora pense em Crepúsculo. A descrição de Edward Cullen, com sua beleza “perfeita” e seus olhos "penetrantes", deixa muito a desejar. Essas descrições vagas são convenientes, mas não nos dizem nada sobre o personagem além de sua aparência genérica. Uma descrição rica vai além da superfície, como em Os Homens que Não Amavam as Mulheres, onde Lisbeth Salander é apresentada com detalhes que imediatamente a tornam única: sua magreza extrema, as roupas de couro, as tatuagens. Esses detalhes não só pintam uma imagem física, mas revelam traços de sua personalidade.
E esqueça essa história de que: não importa o que a pessoa veste, isso não tem nada a ver com as intenções ou personalidade da pessoa. Tem sim. Não é à toa que existe toda uma ciência/arte nos estúdios na hora de escolher o estilo de roupa de cada personagem e sua paleta de cores pra poder visualmente comunicar coisas que não precisam ser ditas.
Veja como os diferentes cortes de cabelo, roupas e acessórios criam personalidades completamente diferentes para Brad Pitt em seus filmes. Imagine se Cliff Booth, de Era Uma Vez em Hollywood se vestisse como o Ladybug de Trem-Bala…
Evite, também, o exagero nos detalhes que não importam. Descrever as várias jaquetas que um personagem usa ou seu tipo de cabelo pode ser desnecessário se isso não adiciona algo à narrativa. Em Cidadão Kane, a grandiosidade de Charles Foster Kane não está em seus trajes, mas na maneira como ele interage com seu império e o modo como o poder o consome. É seu comportamento que se impõe.
Uma voz como todas as outras
Criar diálogos é uma das tarefas mais desafiadoras da escrita. Se todos os seus personagens soam iguais, você tem um problema. Pense em Pulp Fiction, de Quentin Tarantino. Cada personagem tem um estilo único de falar: Vincent Vega é descontraído, Jules é filosófico e violento ao mesmo tempo, e Mia Wallace exala mistério e sensualidade com poucas palavras. Essa diversidade de vozes é o que dá vida às suas interações.
Olhe para Friends. Cada um dos seis protagonistas tem uma maneira única de falar, que reflete diretamente sua personalidade: o sarcasmo de Chandler, o jeito competitivo de Monica, a doçura de Ross, a extravagância de Phoebe, o ego inflado de Joey e a ironia inteligente de Rachel. Eles não são intercambiáveis, porque suas falas e atitudes são parte de quem eles são. Faça o seguinte exercício, pegue uma fala de um personagem e coloque na boca de outro. Se parecer normal, se parecer que aquele personagem falaria aquilo daquela forma, então o personagem não tem personalidade.
Se seus personagens falam de forma genérica, sem uma voz própria, como ocorre em muitas comédias românticas esquecíveis, eles perdem impacto. O público precisa sentir que são pessoas diferentes em cada linha de diálogo. A voz define não só o que eles dizem, mas quem eles são.
Falta de motivação para as ações
Todos os personagens precisam de um motivo para agir. Isso é o básico. No entanto, é comum encontrar histórias onde personagens agem sem motivação clara, como se estivessem apenas seguindo o que o roteiro precisa para seguir em frente. Em Rocky, por exemplo, a motivação é clara desde o início: Rocky quer provar que é alguém, que não é apenas mais um na multidão de lutadores esquecidos. Toda ação dele reflete esse desejo.
Um excelente exemplo de motivação forte pode ser encontrado em O Senhor dos Anéis. Frodo não carrega o Um Anel até Mordor porque quer salvar o mundo apenas. Ele é impulsionado por um senso profundo de responsabilidade, misturado ao temor pelo destino de seus amigos e pela paz em sua terra natal. Essa é uma motivação pessoal e emocional, muito mais poderosa do que um simples "herói salva o mundo".
Provas ausentes ou contraditórias
Há momentos em que você descreve seu personagem com certos traços, mas falha em prová-los. Você pode dizer que seu protagonista é brilhante, mas se ele nunca faz ou diz nada inteligente, o público não acreditará.
Breaking Bad faz isso com perfeição. Walter White é descrito como um professor de química brilhante, e isso é constantemente provado ao longo da série, desde suas engenhocas improvisadas até os métodos engenhosos que usa para escapar de situações impossíveis. A série nunca afirma algo que não mostre. É uma aula de como alinhar características de personagem com ações concretas.
Conclusão
Conhecer profundamente seus personagens é essencial. Sem isso, suas histórias se tornam inconsistentes, superficiais e desconectadas do público. Personagens ricos e bem construídos tornam a narrativa mais envolvente e significativa, permitindo que o público se conecte emocionalmente e acompanhe suas jornadas.
Se suas descrições são claras, suas vozes são únicas, suas motivações estão bem estabelecidas e seus traços de personalidade são comprovados ao longo da trama, você está no caminho certo para criar personagens que não só impulsionam a história, mas que também ficam na memória do público — como Tony Soprano ou Clarice Starling. São personagens que nos mostram que, para uma boa história existir, ela precisa ser movida por pessoas (mesmo fictícias) que pareçam reais.