Minha bebê de dois anos e meio elegeu As aventuras de Pedro, o Coelho, como a história oficial a ser lida antes de dormir. Já perdemos as contas de quantas vezes lemos este livro para ela. Enquanto ela luta contra o sono e acompanha as belíssimas ilustrações, também feitas pela autora Beatrix Potter, percebo o quanto a narrativa se desenrola de um ponto de vista específico. A narradora conta a história com um tom leve, quase condescendente, deixando claro que Pedro é um travesso desobediente — mas para minha filha, a história tem outro tom: ela se diverte com as travessuras do coelho e torce por ele em sua fuga pelo jardim do Sr. Severino. Aqui, percebo como o ponto de vista não é apenas uma questão técnica da escrita, mas também de como cada leitor — ou ouvinte — se relaciona com a história a partir de sua própria perspectiva.
Isso me fez pensar em como o ponto de vista pode moldar nossa percepção, algo que se destacou para mim de forma magistral ao assistir recentemente Vida Selvagem, dirigido por Paul Dano, e que já deixo como recomendação caso você não o tenha assistido. No filme, seguimos Joe, um adolescente de quatorze anos que observa silenciosamente o casamento de seus pais se desmoronar. Mas a história não nos é contada com distanciamento — tudo o que sabemos vem dos olhos de Joe, de seus silêncios e expressões.
O filme adapta o romance homônimo de Richard Ford, publicado em 1990, mas, diferente do livro que é narrado em primeira pessoa, o filme precisou transpor os pensamentos introspectivos de Joe sem o uso de um narrador em off, apostando em uma abordagem unicamente visual. A obra foi aclamada em festivais como Sundance e Cannes, destacando-se pela sensibilidade na direção e pelas atuações, especialmente de Carey Mulligan. Seu maior destaque está na forma como traduz a narrativa em primeira pessoa do livro para o cinema através de escolhas visuais precisas, como o uso da câmera para capturar a perspectiva de Joe. A ausência de um narrador em off é compensada pelo enquadramento cuidadoso de suas reações e expressões, que transformam seu olhar em uma ferramenta que nos guia pela história.
Existem algumas formas de você trabalhar a câmera para mostrar a perspectiva do personagem. A mais óbvia é a POV, Point-of-View, Ponto de Vista em inglês, onde a câmera age como os olhos do personagem. Outra forma é o over the shoulder, quando a câmera filma da perspectiva dos ombros do personagem e nós ainda podemos vê-lo parcialmente desfocado em primeiro plano. Outra forma é simplesmente focar nos olhos desse personagem. E durante este filme temos várias cenas onde as pessoas estão conversando em volta de Joe, mas a câmera escolhe ficar mostrando seu rosto, sua reação, seu olhar para aquela cena. E é claro que para uma cena assim precisa confiar muito na atuação desse ator, porque a audiência vai ser informada dos seus sentimentos e até mesmo pensamentos, apenas através de sua expressão silenciosa observando o que acontece ao seu redor. É o que temos aqui. Cada escolha de enquadramento, cada posicionamento de câmera e cada detalhe foram cuidadosamente pensados por Paul Dano para nos imergir na narrativa através do ponto de vista de Joe. O resultado é uma experiência profundamente empática: sentimos sua solidão, seu desconforto e sua impotência. Como um adolescente de quatorze anos dos anos 1960, educado para ser obediente e submisso aos pais, percebemos, junto com ele, a falta de alternativas e a inevitável aceitação da realidade ao seu redor.
Na literatura, essa escolha também é crucial. O primeiro parágrafo de um romance pode nos posicionar diretamente na mente de um personagem, como faz Graciliano Ramos em Vidas Secas, onde seguimos os pensamentos fragmentados de Fabiano e sua família, ou pode nos manter à distância, como faz o jornalismo clássico, que aposta na terceira pessoa objetiva.
Também vemos essa diversidade narrativa na música. Chico Buarque, por exemplo, usou em sua composição Construção, a terceira pessoa para narrar, de forma fria e repetitiva, a tragédia de um operário, criando um efeito distante e quase mecânico, o que não ocorre ao ouvirmos Diário de um Detento, dos Racionais MC’s. O emprego da primeira pessoa nesta música nos coloca dentro da dura realidade do sistema carcerário, tornando a experiência visceral e intensa.
Já Cazuza, em O Tempo Não Para, se dirige a um “você” genérico — "Mas se você achar / Que eu tô derrotado / Saiba que ainda estão rolando os dados" —, que pode representar tanto o próprio ouvinte quanto uma geração marginalizada. Esse uso da segunda pessoa cria uma conexão direta entre o cantor e o público, tornando a mensagem mais pessoal e envolvente.
A escolha do ponto de vista determina a proximidade emocional entre leitor e narrativa. Me recordo até hoje do impacto que senti ao ler Morreste-me, do autor português José Luís Peixoto. Escrito em segunda pessoa, o livro nos coloca diretamente na posição do narrador enquanto ele se dirige ao pai falecido, criando uma experiência íntima e comovente. A leitura me marcou profundamente, deixando em mim sentimentos únicos sobre o luto, mesmo anos depois de tê-la concluído. Em contraste, Machado de Assis, em Dom Casmurro, faz com que o leitor até mesmo questione a confiabilidade do narrador ao utilizar a narrativa em terceira pessoa.
O ponto de vista não se limita a uma escolha técnica; ele molda a experiência da história. Quando leio Pedro, o Coelho para minha filha, percebo que há dois pontos de vista ali: o do narrador e o dela. Assim como em Vida Selvagem, onde vemos tudo pelos olhos de Joe, a maneira como uma história é contada muda completamente nossa percepção dela. No fim das contas, a força de uma narrativa está tanto na voz que a conta — cabendo ao escritor refletir sobre quais sentimentos e impressões deseja transmitir à sua audiência e, a partir disso, definir como essa narrativa será contada — quanto no olhar de quem a recebe.
Escreve de forma tão brilhante quanto cria os vídeos no YouTube, vc é uma inspiração para mim, pretendo chegar neste nível um dia.
Jurando, vi você analisando um filme dentro da Brasil Paralelo e em certo trecho vicfaz uma referência a uma situação do filme que está no roteiro do filme, mas não exatamente no filme. Entendi que para entender melhor a história seria importante ler o roteiro do filme. Como conseguimos acessar os roteiros dos filmes ? Obrigado!