O Assassino é uma aula de paciência
Mais que Ação: A Lição de Storytelling em 'O Assassino
Quando assisti o filme O Assassino eu já tinha ouvido algumas reclamações. Pessoas dizendo sobre como esse filme era muito lento, arrastado, e coisas do tipo. Mas eu conheço a filmografia do David Fincher, gosto do storytelling, do visual e do estilo do diretor. Pensei: não tem como me decepcionar. E estava certo. Acredito que aqueles que detestaram o filme foram a ele com uma expectativa de algo que ele nunca teve intenção de ser. Não é um filme de ação. Não é um filme de assassinatos. É um filme sobre um assassino. E ele é uma lição sobre como contar histórias com calma.
Já falei em vídeos e textos sobre a tendência cada vez mais exaustiva de filmes atuais refletirem a aceleração cada vez mais brutal da sociedade moderna. Cortes abruptos, narrativa rápida, arcos curtos, conflito logo nos primeiros segundos, e outras coisas do tipo. Você pode ver isso nos filmes, nas músicas e nos Youtubers. O estilo de edição Mr. Beast onde letras brilham constantemente na tela, com movimentos rápidos de câmera onde acontecem várias coisas ao mesmo tempo.
Mas isso cansa.
E há um movimento oposto surgindo em especial nos Estados Unidos (e como a principal característica da autenticidade brasileira é copiar os americanos com 2 a 5 anos de atraso, isso logo chegará aqui). As pessoas estão cansadas, suas mentes estão saturadas, com a quantidade de informação e estímulos constantes que recebem durante o dia inteiro nas redes sociais. Elas estão cada vez mais interessadas, em especial a geração Y e X, em conteúdos mais pacientes. Elas querem ter de volta a paciência que tinham há 15 anos. E O Assassino é um filme que nos ensina a ter essa paciência.
Pra compor o storytelling paciente, o filme faz uso de alguns truques. Ele gera expectativa com relação ao protagonista. Logo no começo, temos o assassino falando sobre todas as regras que segue e os cuidados que toma para cometer os assassinatos. Vemos sua rotina repetitiva, mostrando os bastidores que nunca aparecem nos filmes sobre assassinos. Mostrando como eles precisam ser pacientes, esperar e observar por dias, até semanas, para conseguirem pegar seu alvo no momento certo. Sua descrição faz sentido, é racional e por isso parece muito mais realista do que os filmes de ação que estamos acostumados a ver.
É criada uma imagem muito positiva desse assassino, como se ele fosse o melhor de todos, um cara extremamente profissional e eficiente.
E então, na hora de o vermos em ação… ele erra. E essa subversão nos tira o tapete. Aquela não era uma história sobre o alvo. Aquele era um MacGuffin, uma mera distração e artifício para poder colocar a história em movimento. Essa não é uma história sobre um assassinato, mas sobre um fracasso. O que acontece quando você erra em um trabalho onde erros não são tolerados? E então o diretor vai nos colocar nos passos desesperados desse cara tanto pra ir em busca de vingança contra os chefes que querem matá-lo por seu erro, como sua sobrevivência diante das consequências de seu erro.
O protagonista não tem nome, assim como no filme Driver, Clube da Luta e Por Um Punhado de Dólares. O que isso faz é deixar o espaço vazio para que o expectador coloque seu nome. É um filme que conscientemente tenta criar a sensação do “Literalmente Eu”, fenômeno cada vez mais comum de identificação do público com o protagonista. A frase “talvez você seja como eu” é explicitamente mencionada no filme, mostrando essa intenção. A narração em primeira pessoa também ajuda nesse processo.
Outra estratégia inteligente usada no filme é a música para contar a história de forma diegética (ou seja, a música toca dentro da realidade do filme, não como uma adição editorial). Logo no começo, ao vermos a playlist no iPod do Assassino podemos, se prestarmos atenção, prever toda a história do filme.
A escolha de The Smiths cria uma atmosfera nostálgica. A primeira música do filme é: Well I Wonder, do álbum Meat is Murder (Carne é Assassinato).
Em seguida toca a música How Soon is Now, uma música sobre ser humano, um pouco antes do Assassino cometer um erro, como todo ser humano. A letra diz:
Eu faço as coisas do jeito errado?
Eu sou humano e preciso ser amado.
Enquanto viaja para reencontrar com a namorada que está em perigo, ele ouve a música Hand in Glove, que possui a seguinte estrofe:
Se eles ousarem tocar num fio de cabelo seu
Eu vou lutar até o último suspiro
Quando viaja pra Nova Orleans em sua jornada de vingança, a música Bigmouth Strikes Again toca, uma música que fala sobre o desejo de matar passionalmente uma pessoa e que tem a seguinte frase:
E eu não tenho direito algum de ocupar o meu lugar na raça humana
Depois ele ouve a música Girlfriend on a Coma (Namorada em coma), o que é bem o que aconteceu:
A música ajuda a contar a história e descreve a jornada, o arco deste personagem. Nada é por acaso.
Ele vive por um código de conduta, por um conjunto de regras que existem para impedir que ele seja pego ou que destrua sua vida. Ser assassino, ao menos um assassino longevo, requer muito cuidado, paciência e dedicação, nada pode ser feito por paixão ou raiva, as coisas precisam ser raciocinadas, ponderadas. Mas assim que ele erra, começa a quebrar cada uma de suas próprias regras que existiam para protegê-lo. Ele percebe que a única forma de proteger a mulher que ama e a si mesmo é esquecer as regras e partir pra carnificina.
Percebemos no final, porém, que essa não era uma vingança cega. Havia uma dose de racionalidade, de reflexão e de consciência de responsabilização pelos seus atos.
Este é um filme excelente, a despeito das muitas críticas que recebeu.
O filme não é lento, ele tem um ritmo necessário pra compor a imagem do personagem e pra desenvolver sua história.
Muitos escritores tendem a colocar o maior número de informação possível em um curto espaço de tempo. Eu sou culpado disso também. Temos tanta informação na nossa cabeça sobre a nossa história que queremos entregar essa informação o quanto antes para nossos leitores. Mas com isso perdemos a capacidade de criar beleza. Beleza não se cria na pressa, mas na contemplação paciente. Imagine tirar todas as cenas de cenário, montanhas, árvores e riachos do filme O Senhor dos Anéis. Comprima-o o máximo possível. Tire tudo o que não é “história”, e o que restará será uma história muito mais rápida, concisa e objetiva, mas nem de perto tão bela.
Percebo essa paciência em Miyazaki. Os filmes do Studio Ghibli são, em geral, muito pacientes. A Princesa Mononoke possui cenas longas de diálogos e contemplação. O mesmo com Memórias de Ontem, um dos meus preferidos. Nessas cenas temos trilha sonora, ambiente, imagens e a história sendo contada através do cenário, dando uma pausa, um respiro para que o público reflita no que acabou de acontecer e se prepare para o que vai acontecer.
David Fincher faz isso muito bem nos seus filmes. Se7ven: Os Sete Crimes Capitais possui uma história que avança rapidamente, mas sem perder a capacidade de parar em algumas cenas e se deter em vários detalhes, de se afastar e mostrar de longe ou de se aproximar bastante pra mostrar bem de perto.
Existe público para histórias rápidas e sem reflexão. Existe público para histórias calmas e reflexivas. Todo escritor que escreve com paixão, coração e razão vai encontrar um público que se identifique com seu estilo. A principal lição é a de que não devemos mudar nosso estilo para nos adaptar ao espírito do tempo (a não ser que seu mero objetivo seja ganhar muito dinheiro, nesse caso o melhor que pode fazer é estudar o espírito do tempo, tratar o público como consumidor e criar um produto/arte que atenda suas demandas).
Análise cirúrgica, como sempre!