Dominando a narrativa: Lições de storytelling com Rick e Morty
O que podemos aprender com Rick Pickle sobre a arte de contar histórias?
Fazer rir é uma das formas mais complexas de storytelling. Todos nós sabemos os segredos de fazer alguém chorar: um casal feliz que perde o único filho, um acidente trágico que mata o amor da sua vida, uma doença que aparece no melhor momento da sua vida, o divórcio de duas pessoas que se amam muito, e a lista vai embora. São temas atemporais e universais. Mas fazer alguém rir… é diferente. Não existe uma lógica perfeita, é totalmente condicionado ao tempo, cultura e língua. Quem de nós nunca passou pela experiência de rever algo que era extremamente engraçado há 8 anos, apenas para descobrir que não tem muita graça hoje?
Fazer rir é uma habilidade especial de storytelling. E nisso, Justin Roiland e Dan Harmon são mestres. Os criadores das séries animadas Rick e Morty e Solar Opposites conseguiram criar um multiverso com os melhores cliffhangers e um uso inteligente da arma de Tchekhov. A série conta a história de Rick, um cientista genial capaz de viajar pelo multiverso, e seu neto Morty, um adolescente inseguro, muito mais parecido com seu pai do que com sua mãe. Vejamos algumas coisas que podemos aprender sobre escrita com essa série:
1: Originalidade e criatividade. A série combina elementos de ficção científica, humor e drama familiar para criar histórias envolventes e imprevisíveis. O espectador nunca sabe o que vai acontecer, apesar de ter sempre um senso de antecipação quanto às possíveis consequências das ações de Rick. Veja como exemplo o episódio "Pickle Rick" (Temporada 3, Episódio 3), onde Rick se transforma em um picles. O motivo pode não ser óbvio logo de cara, mas logo fica evidente que ele fez isso apenas para evitar uma sessão de terapia familiar. A ironia disso é que essa decisão o leva a uma série de eventos absurdos e violentos que abordam questões profundas sobre relacionamentos familiares e responsabilidade.
Rick faz algo absurdo e inesperado transformando-se em um picles. Morty fica tentando encontrar algum sentido naquilo. Picles voam?, ele pergunta. Talvez os picles vivam para sempre, ou exista algum outro benefício em se tornar um picles. Rick, com seu niilismo tão característico, responde:
“Morty, pare de procurar camadas escondidas e apenas se impressione. Eu sou um picles.”
“Mas por que alguém faria isso?”, Morty pergunta.
“O motivo para qualquer um fazer isso, se pudesse, mas não pode, seria porque pode, mas não pode”, responde Rick.
A resposta aparentemente absurda de Rick revela a originalidade e personalidade do personagem. Ele faz coisas absurdas simplesmente porque ele pode fazê-las. Outras pessoas não fazem esse tipo de coisas simplesmente porque não podem.
Donald Glover, criador da série Atlanta, disse algo semelhante ao comentar a terceira temporada da série. Nela, ele experimentou estilos narrativos e temas muito diferentes. A explicação, segundo ele, é porque ele pode, e parecia ninguém mais em Hollywood podia fazer isso.
Ser original, criar histórias diferentes, até mesmo absurdas, deixam o enredo marcante. É aquilo que Neil Gaiman chama de “o jogo do ‘e se’”. E se o Rick se transformasse num picles? Isso é absurdo, mas pode ser genial também.
Aliás, uma das cenas mais engraçadas da série está neste episódio, quando Summer, Beth e Morty chegam ao consultório da psicóloga e Morty chama atenção para um quadro com um homem comendo um cachorro-quente e a palavra “Coragem”.
Pouco tempo depois, o Sr. Goldenfold, professor de Morty, sai da sala da psicóloga e pergunta:
“São pacientes da Dra. Wong também?”
“Temporariamente. Por ordem da escola.”, responde Beth.
“Eu também”, diz o Sr. Goldenfold. “Há quanto tempo vocês comem cocô?”
“Nós nunca... comemos cocô”, reponde Summer.
“Nem eu”, diz o Sr. Goldenfold.
Logo depois, a psicóloga sai, os convida a entrar e nota a placa da coragem, virando-a para o contrário, deixando à vista uma família e a palavra “Dedicação”.
Para o professor Goldenfold, o quadro anterior fazia completo sentido, mas para Morty era absurdo. Essa brincadeira com o absurdo é uma constante da narrativa, que faz parte de sua originalidade.
2: Estrutura narrativa e ritmo. A série equilibra subtramas e arcos de personagens ao longo dos episódios e temporadas. Veja como a série mantém um ritmo acelerado e empolgante, captando o interesse do espectador. O episódio "Total Rickall" (Temporada 2, Episódio 4) é um exemplo perfeito disso. Considerado um dos melhores episódios da série, até mesmo gerou um jogo de tabuleiro de mesmo nome que pode ser comprado no Brasil. Nele, a família lida com uma infestação de parasitas que criam falsas memórias. O episódio utiliza uma série de reviravoltas, introduzindo e eliminando personagens em um ritmo frenético, enquanto explora a dinâmica familiar e a importância das memórias compartilhadas. A introdução do personagem Mr Poopybutthole (Senhor Bunda Cagada, em português) é um dos melhores plot twists da história.
A estrutura narrativa de Rick e Morty é não-linear, cheia de informações, com diálogos que estão sempre revelando a personalidade dos personagens, com cenas que sempre levam o enredo para frente. Não há desperdícios. Não há enrolação. Cada episódio é como uma montanha russa com conflito, ação ascendente, clímax, anticlímax e ação descendente. Poucos escritores conseguem fazer isso, principalmente quando estão mais interessados em número de páginas do que em qualidade de enredo.
3: Desenvolvimento de personagens e arcos. A série explora a evolução dos personagens e seus relacionamentos ao longo do tempo, tornando-os mais complexos e tridimensionais. O episódio "The Ricklantis Mixup" (Temporada 3, Episódio 7), o episódio com a nota mais alta no IMDB, é um bom exemplo de construção de mundo e desenvolvimento de personagens, mostrando diferentes versões de Rick e Morty em uma sociedade distópica e abordando temas como poder, corrupção e desigualdade que lembram uma mistura de 1984 e Dia de Treinamento. Aliás, o nível de referências desse episódio é assombroso. E essa é uma lição importante sobre construção de personagens. Bons personagens nos fazem lembrar de algo, dos arquétipos clássicos. Não existe personagem 100% autêntico. E não precisa existir. Há muito paralelo entre Tony Soprano, Walter White, Thomas Shelby e Don Draper, e o fato de eles compartilharem as características arquetípicas os tornam ainda mais interessantes.
Os criadores de Rick e Morty conseguem fazer isso muito bem nesse episódio. Nele você tem:
Policiais Rick e Morty: A dupla de policiais mostra como duas versões de Rick e Morty podem ter valores e atitudes completamente diferentes. A relação entre os dois revela um Morty mais maduro e desiludido, enquanto o Rick policial é mais compassivo do que o Rick protagonista. Essa dinâmica subverte as expectativas do público e enriquece a construção dos personagens.
Candidato Morty: A campanha eleitoral e a subsequente ascensão do Candidato Morty ao poder como Presidente da Cidadela revelam um lado mais ambicioso e manipulador de Morty. Este arco permite explorar o tema da corrupção e a luta pelo poder dentro da Cidadela, bem como a complexidade do personagem Morty.
Trabalhadores da fábrica: A trama dos trabalhadores da fábrica, liderada por um Rick descontente, oferece um vislumbre da desigualdade social na Cidadela e das tensões entre as diferentes versões de Rick e Morty. Esse enredo serve como comentário social e também contribui para aprofundar a construção do mundo na série.
4: Temas e subtexto. "Rick e Morty" utiliza temas e subtextos para enriquecer sua narrativa, abordando questões filosóficas, éticas e existenciais de maneira inteligente e divertida. Veja alguns exemplos:
Exemplo 1: "Os Ricks devem estar loucos" (Temporada 2, Episódio 6). Neste episódio, Rick e Morty visitam universos em miniatura criados por Rick para alimentar o motor de seu carro. A trama levanta questões sobre ética na ciência, como até que ponto é aceitável explorar outros seres conscientes em nome do progresso e da conveniência. Além disso, o episódio aborda a natureza da realidade e do livre-arbítrio, já que as pessoas nos universos em miniatura não estão cientes de que suas vidas foram criadas e manipuladas por Rick.
Exemplo 2: "Mortynight Run" (Temporada 2, Episódio 2). Neste episódio, Morty tenta salvar a vida de um ser chamado Fart (“Peido”), que está prestes a ser assassinado. Mas para salvá-lo, ele acaba entrando em uma série de conflitos onde muitas outras criaturas são mortas. Para aumentar o seu dilema, Peido revela-se uma ameaça potencial para o universo, levantando questões morais sobre o valor da vida e as consequências não intencionais de nossas ações. Morty é confrontado com um dilema moral: ele deve salvar a vida de Peido mesmo que isso signifique colocar em risco todas as vidas baseadas em carbono?
Questões filosóficas são sempre interessantes de serem abordadas, principalmente quando tratadas com leveza, ironia e sarcasmo. Do contrário, pode parecer pregação, e o público não quer isso. E se conseguirmos fazer com humor, melhor ainda.
Rick e Morty é, enfim, uma das melhores animações já criadas, mas não apenas isso. É também um exemplo de criação de histórias diferentes, personagens marcantes e de um multiverso capaz de gerar tramas complexas e hilárias.